COLUNA DO RICARDO ERMEL: AS FAÇANHAS DE UM JOVEM MARUJO

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Ricardo Ermel  foi  um dos tripulantes do lendário Brasil 1 – primeiro barco brasileiro a participar da Ocean Race – 2005/06 – Ermel pertenceu a equipe de terra!


 

O Brasil 1 parte de Wellington com destino ao Rio de Janeiro, 6.700 milhas náuticas, o ponto mais ao sul limita-se a latitude 56S, o contorno do famoso Cabo Horn. Espera-se grandes velocidades, ondas, ventos fortes, frio (muito frio) e 22 dias pela proa. Uma novidade nessa perna é a entrada do Luquinhas Brun no segundo barco holandês, no lugar do Gerd Jan Portman, contundido na perna anterior.

 

Os espanhóis tiveram problemas na área da quilha, que passou fatura. Necessitaram receber ajuda externa no pit stop e tiveram que pagar um pênalti largando duas horas depois que o resto da flotilha. Já o barco sueco… meteu um migué… ancorou antes da linha de chegada, e, passou por reparos na água, fugindo assim da penalização.

Antes da partida a preparação para o “Ritual do Cabo Horn”: cachaça e charutos embarcados! A largada para essa perna se deu com ventos de Norte de aproximadamente 12 kt. Os brazucas largam na terceira posição, mas ficam ligeiramente para trás quando tiveram que fazer uma troca de genoa de emergência devido a um rasgo. A opção foi subir uma menor, o que mudou ligeiramente a tática no começo da regata fazendo o barco navegar a procura de ventos mais fortes ao sul. Pouco a pouco o vento foi ganhando intensidade e em curto tempo o anemômetro já registravam 20kt. Contando com possibilidades de acidentes com o velame, o barco levava uma máquina de costura, e, também um experiente costureiro. Stuart Wilson (Stu) havia trabalhado numa veleria, e era o responsável pelos reparos das velas em regata. Esse guerreiro conseguia fazer milagres mesmo com um ambiente não sendo nada propício a tal reparo.


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A rota mais ao sul rendeu frutos e o barquinho se aproxima dos líderes. A flotilha navega de forma compacta, onde a diferença do primeiro para o último são de apenas 21 nm. Turbina e o navegador Marcel voltam a ousar. Agora optam por cruzar uma área de ventos fracos e velejar mais ao norte. No mapa o barquinho azul e amarelo é mostrado ficando para trás. Marcel prevê que o baralho está sendo embaralhado e uma nova distribuição de cartas se dará próxima ao tão esperado Cabo e optando por esse novo rumo o barco irá colher frutos perto desse novo objetivo. Estava certo! O BRA 1 veleja rápido, registra seu novo recorde 526 nm em 24 horas, perdendo apenas para o principal barco holandês que havia registrado 528 nm no mesmo tempo.

No dia 2/03, 18h10Z o barco Brazuca contorna o extremo sul do continente americano, o temível Cabo Horn e computa 2,5 pontos na classificação geral da regata. A façanha coloca o veleiro como a primeira embarcação brasileira contornar o cabo competindo. A garrafa de cachaça já pode ser aberta e o charuto acendido! Nessa rota escolhida, o xodó brasileiro já consegue superar o seu recorde de singradura quatro vezes, e, a nova marca são de 532 nm em 24h.

Após a montagem do Cabo, o barco espanhol, comandando pelo holandês Bouwe Bekking volta a apresentar problemas na área da quilha agora “fazendo muita água”, e, temendo que o barco afundasse o comandante enviou um pedido de socorro para a organização da prova. Os três barcos que vinham atrás foram alertados para um eventual socorro, e, o barco brasileiro se antecipa e muda o seu rumo para se aproximar dos espanhóis. Duas horas mais tarde do aviso, os tripulantes conseguiram conter a entrada de água no barco, e, comunicam a organização da prova que navegariam rumo ao Ushuaia para reparar a embarcação. O BRA 1 assume a terceira posição no terço final da prova e as posições na subida para o Rio de Janeiro se alternavam com frequência. Os brazucas estão velozes.

Enquanto os holofotes estão voltados para a batalha na água na subida da costa brasileira, no dia 8 de março a Vila da Regata é aberta ao público esperando a visita de 150 mil espectadores, e a equipe de terra está enfrentando um contravento apertado! Como é fácil de deduzir, é muito importante quando o barco chegue no porto toda à estrutura de apoio de terra esteja montada, testada, e, esperando por eles. Por isso cada equipe conta com dois conjuntos de containers. Para deixar claro, no Rio utilizamos o mesmo conjunto que foi utilizado em Cape Town, enquanto os que foram utilizados em Wellington iria diretamente para o stopover dos Estados Unidos.

 

Assim enquanto o barco está navegando ou em reparos na parada seguinte o “set de containers” está sendo embarcado, desembarcado e liberado na alfandega do país de destino. Contávamos também com um container aéreo (muito pequeno pois é caro), e com um container compartilhado. Esse último saia normalmente da última parada (no caso Wellington) e chegava depois do barco, mas a tempo da regata in-port.

Explicado isso, no início de março os nossos containers ainda não tinham sido liberados pela alfandega brasileira. Perguntava para a empresa de transporte o que estava acontecendo, e, eles simplesmente falavam que estava no canal vermelho. Eu não podia acreditar no que estava acontecendo, e, apelei para a ajuda do meu grande amigo Marcelo Paradela, da Waiver, para levantar informações internas. Marcelo descobriu junto com o fiscal do Porto de Sepetiba, que a empresa de transporte anexou junto ao processo de importação a listagem do material contêiner aéreo, e, nas páginas posteriores a listagem do container marítimo. O fiscal estava se pegando que o que valia era a primeira página, desconsiderando as demais, e, é claro, 22 itens é bem diferente dos mais de 200 itens declaradas nas páginas subsequentes.

O time brasileiro estava com suspeita e estar fazendo contrabando de material tendo a regata como tapadeira. Sabendo disso me equipei com todos os e-mails e documentações tramitadas no despacho do material, entrei no carro com o meu amigo e seu estagiário com destino ao Porto de Sepetiba. Durante o trajeto Marcelo nos instruía de como se portar dentro da “Area Internacional do Porto”, e, que durante a abertura do container ninguém poderia fumar devido ao risco de incêndio de gases inflamáveis. Com essa informação, mesmo não sendo fumante, me surgiu a ideia de parar para comprar um maço de cigarro e deixar na mochila só de sacanagem, isqueiro eu já tinha, pois sempre carrego um no meu estojo para queimar eventuais cabinhos. No encontro, no escritório aduaneiro, o fiscal demonstrava-se completamente sem saco e sem vontade alguma de ajudar.

 

Perguntei o que estava acontecendo, e, ele me informou que se tratava de um caso de contrabando de material e que o contêiner estava apreendido. Demonstrei surpresa pela informação, não deixando saber que o Marcelo já havia me brifado do que estava ocorrendo. Pedi então que ele batesse a relação que ele tinha, com o que havia dentro do contêiner, e a que eu tinha enviado e que ele me mostrasse a inconsistência. Pois então, fomos ao container! O sol rachava, o calor era do verão carioca era insuportável! Quando ele abriu a porta eu perguntei se podia fumar.

A resposta era conhecida, eu teria que que afastar e não poderia entrar no contêiner com o cigarro acesso. Assim o fiz. Me afastei, acendi o cigarro, e fiquei fazendo cena afastado enquanto o cara mergulhava no contêiner entulhado repetia irritado: “isso não está na relação, isso não está na relação, isso não está na relação,…”. Quando ele saiu do container eu apaguei o cigarro, e pedi que ele me apresentasse a lista que ele possuía, onde pele primeira vez, ele me mostrou a lista do container aéreo.

Concordei com ele de imediato, você está coberto de razão, não vai encontrar nenhum desses itens aí dentro, pois essa é a relação do meu container aéreo, quero ver a relação do meu container marítimo! Ele me dizia que aquela era a que ele tinha recebido.

Foi aí que saquei a cópia dos e-mails tramitados, mostrando a ele que aquela documentação era equivocada. Mostrei a lista da relação do material enviado, e, que ele poderia bater item por item que tudo ali estava relacionado. A má vontade era grande, e, ele disse: “Meu amigo meu trabalho é comparar a listagem que me mandam com material que recebo. Esse caso é de contrabando o material e está tudo aprendido.” Percebi que ele esperava que eu oferecesse uma solução “mais fácil”. Concordei com ele mais uma vez, disse que estava certo fazendo cumprir a lei, e não me opus que o contêiner fosse fechado. Mas pedi a ele mais um favor, que ele recebesse a equipe do Globo Esporte, para explicar o que tinha acontecido, e, porque o barco brasileiro não poderia ter a sua base armada na sua própria casa.

Caraca, o bicho ficou puto!!! Espumava berrando! “Por isso que não gosto de eventos esportivos!” “Sempre é um problema atrás do outro!” “Sempre fazem merd@!” O fiscal tomou a lista que eu possuía das minhas mãos, abriu o container, e, me disse: “Faz uma outra relação manual com tudo que tem ai dentro! Se você colocar um único item nessa nova, que não esteja nessa lista, o contêiner não vai sair de jeito nenhum!” Certo do conteúdo da minha lista, pedi somente autorização para retirar a camisa, e, mergulhei de cabeça naquele monte de material empilhado.

Passei a tarde toda relacionando o que eu podia e estivesse acessível, visto que estava vetado tirar qualquer coisa do contêiner. No final tinha uma lista extensa, mas não completa pois faltavam os consumíveis que estavam dentro dos armários, mas foi o suficiente para ser liberado. Aproveitei a ocasião, e, ainda com o mesmo pretexto da presença da imprensa, ainda liberei o container do time sueco, que trazia comida liofilizada (o que para ele não podia ser liberado sem ter autorização da Anvisa), e o contêiner dos espanhóis que tinha uma cozinha inteira dentro… Só babaquice!!!

 

Com a base de terra resolvida podíamos focar na recepção do barco no Rio de Janeiro. Já sabíamos que a nave teve problemas navegando; que o reservatório de óleo hidráulico estava vazando e tinha que ser reparado e tinham várias outras velas rasgadas. Apesar de ter óleo hidráulico sobressalente (aproximadamente 30 litros), o mago Horácio Carabelli, conseguiu montar um aparato para colher o óleo que vazava e o reciclava retornando para o próprio tanque hidráulico.

Tal feito, rendeu a Horácio um prêmio especial de pensamento ambiental. Na água as posições se alternavam, a tripula agora está em segundo lugar! O recorde da singradura já não voltaria a ser batido. A torcida brasileira não conseguia segurar a emoção! Coração na boca!!!

Antes da partida o Knut brincava: “Se der podium brasileiro no Rio seguramente terá uma rua chamada Kiko Pelicano!” Até a linha de chegada as posições se alternavam. O barco principal da Holanda entra em primeiro a 00 hora e 18 minutos do dia 11 de março. Seguido do barco americano às 04:06h, do segundo barco holandês – 04:36h, e o BRA 1 às 04:55h; os três na mesma hora do mesmo dia!

A recepção tinha que ser diferente, era uma parada mais do que esperada para a tripulação brazuca, aterrávamos em casa! O Play já tinha comprado uma grande quantidade de fogos de artifício para comemorar a entrada do barco na Marina da Gloria. Só um detalhe impediu a festa, a proximidade com o Aeroporto Santos Dummont. Como a marina está próxima a linha da pista de pouso e decolagem, a queima de fogos é proibida. Não houve santo que mudasse o posicionamento do aeroporto.

Só que desconheciam quem estava organizando! O Play veio com uma solução alternativa, alugou uma traineira, e os fogos foram estourados na boca da barra, na linha de chegada! Pelo menos outras 30 embarcações aguardavam o barquinho brasileiro, que completava a sua volta ao mundo, regressando ao mesmo ponto que partia no dia 20 de agosto de 2005 com destino a Portugal. Foi o melhor presente de aniversário que eu pude receber. Claro que nesse dia, um pouco mais tarde, o tradicional churras comeu solto regado a muita cerveja. Em casa é diferente!


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