COLUNA DO RICARDO ERMEL: AS FAÇANHAS DE UM JOVEM MARUJO

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Largada em Cape Town

 

 

 


Relato de um dos tripulantes do lendário Brasil 1 – primeiro barco brasileiro a participar da Ocean Race – 2005/06 – Ermel pertenceu a equipe de terra!

 

Dois de Janeiro de 2006, foi a largada da Etapa Cidade do Cabo – Melbourne.

Como já narrado, o Brasil 1 chegou em Cape Town em 4 de dezembro, logo 29 dias entre descansos, reparos, regata in-shore, preparos. Foi uma dos “pit-stops” mais longos dessa edição.

Chegada do Bra 1 em Port Elizabeth

A comemoração pela chegada do barco e pela posição conquistada foi no tradicional e bom churrasco. Mas aí teve uma passagem interessante. A base estava montada no estacionamento do The Table Bay Hotel – Waterfront, um hotel que sua classificação era uma verdadeira constelação. Cheio de frescura com o objetivo de poupar a comodidade dos hospedes, uma das regras que nos foi dada aos times era que era proibido “abrir” qualquer tipo de fogo naquela área, incluindo assim o nosso churras. Fui conversar com o gerente do hotel para chorar uma exceção. Era uma negativa atrás de outra, quando sem querer utilizei a frase certa. – Para os brasileiros o churrasco é sagrado! O cara sem entender muito bem, me perguntou como assim? E, eu aproveitei a deixa… – Toda sexta-feira temos que “religiosamente” fazer um churrasco como agradecimento aos deuses. A figura continuou sem entender nada, mas também não queria irritar os “deuses”. Liberou o churrasco para a equipe brasileira toda sexta-feira – “dia sagrado”. A desculpa só foi por água abaixo numa quarta-feira quando o Play decidiu colocar uma carne sobre o carvão em brasa. Eu ainda tentei convencer o Marcelo que quarta-feira não era dia “santo”, sem sucesso. A churrasqueira foi acesa e os trabalhos começaram. Em menos de 30 minutos a brigada de incêndios se apresentava! Foi casca-grossa e engraçadíssimo os discursos de enrolação aos brigadistas para ganharmos tempo de terminar de assar aquelas peças…

 

Enquanto i

barco regressando a regata, com direito a uma brincadeira na area reparada, o que mostrava o bom humor da turma

sso como a Mara, minha esposa, tinha uma vontade grande de conhecer a cidade africana, e eu estaria Natal e Virada de Ano longe de casa, decidimos que ela passaria essas datas comigo. Distribuiríamos a gurizada da seguinte forma: Carol (17 anos) ficaria com a Dna. Zezé, a avó materna; Jessica (11 anos) ficaria com a Regina, prima da Mara; e, o João Victor (1 ano e 7 meses) ficaria com a LH, minha mãe. Mara chegou ao meu encontro por volta do dia 20 de dezembro, e decidimos ficar até o dia 6 de janeiro, quando retornaríamos juntos ao Brasil. Faço um parêntese aqui. Várias pessoas têm a ilusão que a oportunidade de participar de um projeto como esse é a desculpa para fazer turismo em todos os pontos que o barco toca. Genteeee, isso não acontece!!!! É trabalho dia e noite! Quando estamos liberados, desmaiamos de cansaço! Claro que as famílias da equipe conhecem as cidades, pois tem tempo de fazer turismo. Então se você quer dica do que ver em Cape Town, pergunte a Mara, não a mim!

 

Serginho reparando internamente

O que também remete a outro acontecimento. Os familiares estavam programando uma viagem ao Cabo da Boa Esperança entre as festas. Estávamos trabalhando como loucos nesse período. Disse a Mara que como iríamos embora mais tarde teríamos um dia para fazer essa viagem, e, sugeri, que fossemos juntos no dia 5. O BRA 1 suspenderia dia 2, teríamos então 2, 3 e 4, desmontando as coisas e guardando no container. Alguns integrantes da equipe de terra já estariam regressando nos dias 3 e 4, dia 5 iriamos então até o Cabo, e, 6 regressaríamos ao Brasil. Alvaro e senhora também aderiram a nossa programação. Dos que ficaram para regressar mais tarde, Horácio foi fazer um safari; e Serginho e Tim estavam se preparando para voar de volta a casa a tarde do dia 5. Já na estrada, no meio da manhã, toca meu telefone era o Hervé. “Deu Ruim”, volta! Eu perguntava – o que rolou? O barco quebrou! Quebrou o que? Estão todos bem? Não posso falar! Volta e prepara o container para viajar! Ordenava o francês. Retornamos, sem chegar sequer ao meio do caminho! Dna. Mara espumava de raiva! (Em realidade toda vez que tocamos nesse assunto ela espuma novamente, pois estou devendo essa visita ao Cabo a ela até hoje). Serginho e Tim cancelaram suas passagens, Horácio suspendia seu passeio. Faina TOTAL! Poucos integrantes para separar o material necessário de dois containers já fechados e carregados. Tirar o que não seria necessário do container oficina e colocar no de armazenamento, organizá-lo e partir. Por economia só poderíamos levar um dos dois, que em realidade era o suficiente! Mas o trabalho foi enorme!

 

Reparo

Mais tarde soubemos que o barco tinha rachado o convés. Nada muito grave e ninguém tinha se ferido, mas a decisão foi regressar e reparar. Achamos que a tripula estava de manha, então como zoação compramos um chocalho e chupeta e colocamos no barco assim que atracaram em Port Elizabeth. Chegou-se a cogitar que depois do reparo o barco fosse enviado à Austrália de navio. Mas Turbina foi firme: “Viemos aqui para velejar, e não para mandar o barco de um ponto a outro de navio!” Essa decisão foi valiosa, pois o BRA 1 foi o único barco nessa edição a pontuar em TODAS as pernas. O reparo foi rápido e fomos muito bem recebidos no clube local. Como já conheciam a nossa fama de Loucos por Churras, o que rolou? Mais um churras, oferecido dessa vez pelos sócios daquele clube.

No dia 8, eu estava dentro do barco realizando um trabalho na popa, quando chega o Horácio pedindo que eu ligasse para Mara. Eu agradeci o recado e disse que ligava mais tarde por Skype, imaginava que era apenas para dizer que ela tinha chegado bem. Lembro que não existia o Whatsapp, logo o Skype era a opção mais barata para comunicação. Ele negou, disse que ligasse imediatamente, e, me passou seu próprio telefone dele já fazendo a ligação internacional. Saquei que tinha dado merda na hora. Peguei o telefone e completei a chamada. Morávamos na Tijuca, víamos confronto entre traficantes todos dos dias entre duas comunidades rivais. Eram balas traçantes passando de um ponto a outro. Mara era muito preocupada com balas perdidas, agravadas pelas notícias constantes divulgadas pela imprensa. Eu brincava com a situação pois o problema não são as balas perdidas, e, sim as achadas. Horácio olhava fixamente nos meus olhos. Eu perguntei a ela, e ai, tudo bem? Mara disse:– recorda que o problema são as balas perdidas…, então a Jessica achou uma! Caraca, um frio subiu pela minha espinha! Eu perguntei a onde ela “tinha achado”? Ela, na bunda. Continuei: – a Jessiquinha passa bem? Posso ajudar em alguma coisa? A resposta foi positiva: passa bem, tem que ficar em observação uns dias, e você não pode ajudar em nada. A previsão para finalizar os trabalhos era em dois ou três dias, logo até fechar tudo e voar de volta tardaria pelo menos 7 dias. Optei por ficar, pois ali eu podia ajudar em alguma coisa. Horácio queria me enviar de volta ao Brasil na mesma hora, mas não fui! Ali eu era útil, e, a situação já estava sob controle.

O lance aconteceu com a Mara no avião. A Jessica pediu ao tio que a levasse para tomar um refrigerante na padaria em Niterói. Também por desentendimentos de traficantes, um resolveu encaminhar o outro para uma reunião com S. Pedro descarregando duas pistolas. Uma das balas atingiu a Jessica. Ela tem o projétil até hoje na bunda, pois parou muito próximo a coluna e a operação para a retirada seria muito arriscada. Hoje o fato é motivo de gozação. Eu brinco que ela tem uma “bala na agulha” que ninguém deve irritá-la. Felizmente o trauma já está bem superado!

 

Container oficina em Port Elizabeth

O barco volta para a competição, guardamos tudo, compramos passagens, e, voltamos para o Brasil, pra esperar a próxima viagem para a Austrália. O regresso foi longo, não consegui dormir nada no voo! Um fator importante nessa regata é o sigilo. As equipes adversárias ao saber o que ocorreu com um participante se preparam para que não aconteça o mesmo com elas. Preocupado com a situação da Jessica e com o que dizer no Brasil quando os amigos perguntassem o que tinha acontecido com o barco foram horas de meditação. Aterrizei no Rio numa terça-feira e fui direto pra casa preocupado, e morto de cansado. Quarta-feira era dia de encontro no Bar Temático do ICRJ, onde carinhosamente chamamos de “Bar Traumático” pois ali são escutadas as desculpas dos que perderam regatas e a zoação dos vencedores. O discurso com relação ao acontecido com o convés já estava pronto! O que eu falasse em nada comprometeria a equipe. Porém, antes das sete da manhã de quarta-feira, o telefone toca, era Ann Viebig. O que fazemos? Mandamos quem pra onde? Eu tinha acabado de acordar, não estava entendendo nada… Ao mesmo tempo liga o Rony pelo outro telefone: – Boy o BRA 1 quebrou o mastro! Caraca, pedi um tempo aos dois, e, fui buscar informações com o Herve. (Ida ao ICRJ – Cancelada)

zoação que virou amuleto

Bom a história do mastro é bem conhecida da galera, em resumo: O barco passou pelo portal de pontuação, e, logo depois devido a fadigas no fuzil do estai lateral, o mastro veio abaixo. Bochecha, devido seus esforços para a recuperação das partes que foram ao mar em águas geladas, ganhou um prêmio de heroísmo. Depois de 8 dias em navegação de fortuna, o barco brazuca chegou na costa oeste da Austrália em Fremantle. A discussão era se reparávamos o mastro ou mandávamos o reserva (33 metros) que se encontrava na Inglaterra. O custo de envio era muito alto, e, já estávamos no vermelho. Alan sugeriu cortar o mastro em dois e enviá-lo. Torben defendeu, “mastro em dois eu já tenho”! Estamos aqui para competir! Manda o mastro inteiro. Bom, o mastro foi numa peça inteira da Inglaterra para Sidney em um daqueles aviões que abre a cabine. O barco só poderia rodar durante o dia, atravessando o deserto inteiro, e por isso ganhou o apelido de Rainha do Deserto; enquanto o mastro só poderia rodar durante a noite. O mastro deveria chegar uns dias antes para montagem, e, o barco ainda precisava de muito reparo sem poder ganhar muito peso para manter o limite da regra. A logística funcionou muito bem, e, a turma de terra trabalhou muita coisa!!! O barco ficou pronto para a para disputar a regata in-shore.

Continua – Fevereiro